As told to T. Cole Rachel, 2138 words.
Tags: Photography, Process, Inspiration, Identity, Collaboration, Focus.
Fotógrafa Paulina Valente Pimentel sobre usar o seu trabalho como uma forma de ver
A tua exposição mais recente acaba de estrear, inserida no âmbito do Festival Tremor. Passaste o último ano a documentar a cultura juvenil da ilha da São Miguel, movendo-te entre dois mundos muito diferentes. Acompanhaste miúdos de algumas aldeias piscatórias extremamente pobres, e andaste com outros provenientes das famílias mais afluentes da Ilha.
É uma Ilha é extremamente isolada, e só agora é que começa a abrir-se mais aos que vêm de fora. Mantiveram todas as tradições de Portugal — tudo, desde os reis aos piratas. Aqui, a sociedade ainda é muito segregada de acordo com a riqueza e o estrato social, e as pessoas provenientes de mundos diferentes não se misturam. Por exemplo, muitas vezes, a primeira pergunta que nos fazem é, “És filho de quem?” Querem saber o teu apelido, o teu nome de família. Aqui, isso ainda é tem muita importância. As pessoas que vivem nas vilas e aldeias piscatórias, como a vila de Rabo de Peixe, muitas vezes, nunca vieram ao centro de São Miguel, e as pessoas da cidade nunca foram a certas aldeias. Não se misturam… e não é uma ilha propriamente grande.
Há coisas aqui que parecem já não existir no continente há muito. São Miguel ainda conserva certos hábitos da alta sociedade. Há o Baile de Debutantes, onde as meninas vestem vestidos muito requintados e são apresentadas aos que partilham o mesmo estrato social. Exibindo esses vestidos — vestidos de noiva —, começam por dançar com os seus pais, que mais tarde lhes apresentam os jovens rapazes presentes no baile. Estão inseridos numa cultura muito exclusiva que celebra estas tradições antigas. É algo que já não se vê em Lisboa.
Estava muito curiosa em relação a tudo isto. É como se nestas ilhas algumas das tradições tivessem ficado cristalizadas. De certa forma, ficaram congeladas no tempo.
Simultaneamente, vêem-se alguns desenvolvimentos modernos surpreendentes. Estas aldeias piscatórias ainda constituem culturas muito conservadoras e dominadas pelos homens — homens que todos os dias partem para o mar nas suas embarcações sem saberem se vão voltar. É complicado. Por outro lado, há uma comunidade gay muito visível, muitos gay e transexuais que geralmente são muito bem aceites pelo resto da comunidade. Há um rapaz que aparece numa das fotografias, conheci-o quando o vi a dançar na rua. Abertamente homossexual, gosta de se vestir e de usar maquilhagem, mas é também um pescador. Sai para o mar todos os dias, e — pelo que constatei — todos o aceitam. É claro que isto é uma coisa positiva, mas não é o que estava à espera. Aqui, é mais fácil ser homossexual aqui para um homem do que para uma mulher. As mulheres têm uma vida muito restrita. Contaram-me que não podem frequentar os cafés, pois esses são para os homens. Na praia, banham-se completamente vestidas. É muito estranho.
Este trabalho mergulha-nos no interior das vidas de dois grupos de jovens muito diferentes — e provenientes de classes sociais opostas. Contudo, mostra-no-los sob a mesma luz, no mesmo patamar emocional. Enquanto fotógrafa que passou muito tempo nos quartos destes adolescentes, dirias que há algo de universal na experiência que é ser-se adolescente?
Em alguns aspetos o comportamento destes jovens é semelhante. Todos têm iPhones, todos gostam de se dar a conhecer de uma certa maneira, com uma certa postura, todos têm a internet muito presente nas suas vidas, e todos gostaram de ser fotografados. Estavam muito entusiasmados. É claro que vivem de acordo com diferentes códigos de conduta e os seus comportamentos são diferentes. Foi fascinante reparar em certos pormenores, como, por exemplo, a forma como comiam quando eu estava por perto, ou como reagiam às fotografias. No início, as raparigas estavam um bocadinho mais apreensivas, e não se sentiam muito confortáveis; demoraram um pouco habituarem-se a estar em frente à câmara. Já os rapazes, — principalmente os homossexuais — sentiram-se imediatamente à vontade e muito contentes por me terem ali com eles. Conheci-os quando os vi a dançarem na rua. Quando lhes perguntei se os podia fotografar responderam, “Sim, por favor. Vem até nossa casa!” Eram muito mais abertos, confiantes, e tinham um certo orgulho neles próprios.
Eles queriam mesmo ser fotografados.
Sim. Mas o que dizes é verdade: quis fotografar todos estes miúdos da mesma maneira, independentemente do seu estrato social, género ou orientação sexual. É por isso que todas as fotografias têm o mesmo tamanho e todas as imagens estão misturadas. Todos os miúdos têm os mesmos medos e os mesmos desejos. Querem ter namorados e namoradas, e querem ser felizes. Praticamente todos me confessaram que gostariam de sair da ilha e conhecer outros mundos. É claro que as realidades das suas vidas são muito diferentes. Alternar entre estes dois mundos, andar por aquelas casas tão diferentes umas das outras, todas elas na mesma ilha, constituiu, para mim, um processo muito interessante. São duas realidades muito destintas.
Já fotografaste todo o tipo de pessoas em lugares espalhados pelo mundo inteiro, incluindo membros de algumas comunidades muito marginalizadas. Como fazes para ganhar a confiança dessas pessoas? Como as convences a abrirem-te as portas das suas casas?
Neste caso em particular, ao início, muitos dos miúdos nem percebiam muito bem o que eu estava a fazer. Expliquei-lhes que queria fotografar os jovens da ilha e que para isso iria utilizar um determinado tipo de câmara e de filme — algo que a maioria deles nunca tinha visto. Quando me viram a trocar de rolo, perguntaram-me, “E agora, já podemos ver as imagens?” Tive de lhes explicar que esta câmara não era como um iPhone, que não era digital. Eles estranharam.
Por norma, quando os abordava levava um livro com o meu trabalho, ou mostrava-lhes o meu site.
Dizia-lhes, “O meu estilo é este”, e de repente era como se eles me percebessem imediatamente, como se percebessem que não lhes estava a pedir para pousarem e sorrirem. Queria que fossem eles mesmos, por isso era importante deixá-los relaxar. Para isso acontecer, foi necessário passar muitas horas com eles. Nunca apareci ao pé deles só para tirar fotografias e me ir logo embora. Andei com eles de um lado para o outro… e muito. Não queria só tirar-lhes fotografias, queria conhecê-los.
Sendo portuguesa, porque sentiste que era importante desenvolver um projeto destes nos Açores?
O meu trabalho, muitas vezes, tende a ter uma conotação social e política. Contudo, sempre me senti muito ligada aos jovens. Principalmente agora, com todas estas crises globais, interessa-me saber como vivem os jovens e o que pensam eles. Comecei a desenvolver este tipo de trabalho na Grécia, quando a grande crise rebentou lá — um tipo de trabalho que também desenvolvi no norte da europa. Esta foi a primeira vez que trabalhei nas Ilhas de Portugal. Sendo portuguesa, os Açores sempre constituíram um certo fascínio para mim, porque parecem ser uma terra tão remota. Até há relativamente pouco tempo, visitar os Açores não era fácil para a maioria dos portugueses. Poder viajar até um lugar como os Açores, com as suas tradições tão rígidas, com um fosso tão grande entre novos e velhos, ricos e pobres, foi uma experiência mesmo muito gratificante. A religião também está muito presente na ilha. Quis falar com as pessoas, ouvi-las, e dar início a diálogos férteis. Além disso, este trabalho também serve para sensibilizar as pessoas que o virem, mostrando-lhes estas ilhas tão especiais que muita gente desconhece.
O que achas que te leva a fazer este tipo de fotografia? Será apenas o facto de sentires uma grande empatia pelas pessoas e por quereres escutar as suas histórias?
Acho que é isso mesmo. Sou uma pessoa muito sociável e gosto de falar com as pessoas. Para mim, o mais importante nem é a fotografia, mas sim as ligações que esta me ajuda a criar com aqueles com que me cruzo. Sou mais feliz quando estou a fotografar, a conviver e a falar com as pessoas que fotografo. Consigo passar horas e horas em casa de uma pessoa. Como te disse, quero conhecer as pessoas que fotografo, as suas vidas, as suas histórias. Acho que sou uma pessoa genuinamente curiosa, com um sentido de empatia e um interesse genuíno pelas pessoas. Acabam por se tornar numa espécie de família. O mais importante é o processo. Entrar numa casa que não conheço, sem saber como esta será, e ver como as pessoas que a habitam vivem, onde dormem, o que comem. É algo muito pessoal. A fotografia vem depois.
Uma das coisas interessantes da fotografia é que esta não se trata apenas de competências técnicas. Mais do que saber mexer numa câmara ou fazer uma ampliação — que são fatores importantíssimos, claro —, há que ter uma certa sensibilidade que é muito difícil de explicar ou ensinar. É como se de uma maneira de ver o mundo se tratasse.
É algo que não consigo explicar. As pessoas perguntam-me, “Ah, tu sabes fazer isso! Como é que fazes?” Por exemplo, os meus estudantes inscrevem-se nos workshops porque conhecem o meu trabalho e sabem que sei fazer bons retratos. São, muitas vezes, motivados por uma única questão: “Como poderei eu fazer retratos como aqueles?” É mesmo muito difícil ensiná-los a fazê-lo. Afinal, como é que ensinamos alguém a fazer com que os outros se sintam à vontade e sejam eles próprios? A forma como eu me relaciono com as pessoas é, naturalmente, diferente daquela como outra pessoa o fará. Acho que muitas vezes as pessoas se sentem à vontade comigo porque sou muito curiosa e aberta. Estou tão focada em todo o processo e tão excitada pelo projeto que, muitas vezes, as pessoas me dizem, “Vá, anda daí” e deixam-me fotografá-las. É, simplesmente, a minha maneira de ser. Podemos aconselhar os outros, mas há certas coisas que não lhes podemos ensinar…
É como tentar ensinar uma pessoa a ver, não é? No fundo, tem que ver com a forma como vês o mundo.
Muitas destas coisas são definidas quando somos jovens. É algo que permanecerá para sempre no nosso interior. É por isso que eu acredito que é importante que visitemos museus, que contemplemos os seus quadros, que assistamos a filmes e a concertos. É muito importante, principalmente para aqueles que produzem arte, que estejamos constantemente em contacto com coisas novas.
Quando me apercebo que alguns alunos não frequentam galerias, não têm o hábito de folhear livros, incluindo livros de fotografia, sei que dificilmente irão produzir alguma coisa. Isto [a fotografia] é algo muito difícil. Montar uma instalação, desde decidir quantas fotografias utilizar até à forma como estas comunicam entre si ou o tamanho das impressões, requer muita dedicação. Curiosamente, é uma das minhas partes favoritas do processo, apesar de ser muito diferente de olhar para um livro de fotografia ou coligir um apanhado de imagens em formato físico. Saber como mostrar o nosso trabalho pode ser tão importante como o próprio trabalho, e é algo que só pode ser aprendido se se procurar, se se contemplar muitos trabalhos diferentes. É assim que se aprende.
Gostei de receber as pessoas nesta exposição; e gostei que me tivessem dito coisas como, “Parece quase um filme!” Isso deixou-me satisfeita, pois era esse o meu objetivo. Ao olhar para este trabalho queremos imediatamente encontrar uma narrativa. Olhamos para as imagens e percebemos que se tratam de pessoas que são diferentes entre si. Vêm de mundos diferentes. Contudo, as nossas mentes não cessam de tentar encontrar formas de os aproximar. Não gosto de revelar demasiado, isto é, de dizer demasiado. O observador deve escrever a sua própria versão da história. Se repares, as minhas fotografias nem sequer têm legendas. Uma vez que se tratam de miúdos e miúdas tão novos, optei por não revelar as suas identidades. Acima de tudo queria que as pessoas interpretassem as imagens e imaginassem as histórias que estas contam na sua própria cabeça. Não quis impor nada.
All images from THE NARCISSISM OF SMALL DIFFERENCES, by Pauliana Vilente Pimentel
Courtesy of Fonseca Macedo Arte Contemporanea