As told to T. Cole Rachel, 1886 words.
Tags: Music, Process, Inspiration, Independence, Beginnings.
Rafael Carvalho a manter a sua própria cultura viva
É muito raro ser conhecido como ser o porta-estandarte vivo para um instrumento específico. Como é que começou a tua relação com o teu instrumento particular, a viola da terra?
Começou quando eu era criança. Sou da Ribeira Quente, uma pequena aldeia aqui em São Miguel. Muitos pescadores e agricultores. Sempre gostei de música e o meu pai tocava guitarra clássica quando eu era pequeno. Ele só sabia tocar quatro ou cinco acordes, portanto foi isso que aprendi quando era criança. Em 1993, algumas pessoas na minha pequena aldeia formaram um grupo folclórico e precisavam de alguém para tocar com eles, portanto tive aulas para aprender. Há uma tradição, no Natal, nas aldeias, onde um grupo de músicos levam o menino Jesus de casa em casa e tocam músicas. Acho que essa foi a primeira vez que vi a viola da terra. O meu professor foi o Carlos Quental e aprendi com ele durante cerca de cinco ou seis meses. Entretanto ele ficou doente, portanto tive que treinar sozinho aos poucos. Foi assim que comecei a aprender sobre o instrumento. O meu professor tinha uma paixão enorme. Ele gostava sempre de explicar melhor o contexto do instrumento mais do que apenas tocá-lo. Ele explicou a função social da viola nas ilhas. Foi o instrumento que aproximou as pessoas.
Quando pensamos no século passado, as pessoas que trabalhavam na terra tinham vidas difíceis nos Açores. Às vezes, com muito mau tempo, as colheitas desapareciam e o mar e o vento apanhavam-te nas ondas. As pessoas ficavam juntas e normalmente cantávamos, tocávamos, e dançávamos, mas se não houvesse viola não haveria nada, nenhuma celebração. Era um instrumento muito importante para socializar. Portanto, se tivesses uma festa, tinhas que ter a viola. Também, os bailes eram o único sítio em que era permitido aos rapazes e às raparigas estarem juntos. Disseram-me que os músicos tinham um papel importante nas aldeias, toda a gente esperava que aparecessem e tocassem. Essa era a única altura em que as pessoas poderiam realmente dançar e estar juntas. Esse foi o contexto, como o meu professor me explicou.
Então, comecei a tocar viola da terra quando tinha 13 anos e tive uma paixão imediata pelo instrumento. Comecei a tocar numa banda com os meus amigos e tive que começar a ensinar e dar aulas de música a outras pessoas quando eu tinha 15 ou 16 anos. Não porque eu soubesse muito, só sabia mais que os outros. Tenho tocado e ensinado a Viola da Terra nos últimos 20 anos.
Onde é que são feitos esses instrumentos?
A minha foi feita na Ilha de São Jorge nos Açores. Todas as ilhas costumavam ter pelo menos uma ou duas pessoas que sabiam fazer os instrumentos, mas é uma habilidade que se perdeu ao longo do tempo. Como as pessoas imigraram para outros lugares, não havia ninguém para fazer os instrumentos nem para ensinar a tocar. Os jovens não estavam interessados. A maioria das violas vinha do continente. Existiam fábricas que as podiam fazer mais depressa. Ter uma viola da terra verdadeira que fosse feita à mão por um artista era mais caro.
Hoje em dia temos mais construtores nas ilhas e eles estão a tentar construir não só com ferramentas diferentes para obter um som melhor, como também têm acesso a melhores tipos de madeira. Os instrumentos são melhores. A que eu tenho comigo agora foi construída na Ilha de São Jorge. Quando viajo para outros lugares, sou como que o embaixador da viola da terra. Quero que as pessoas vejam um bom instrumento, o melhor da sua espécie.
De onde vêm os dois corações da viola?
Então, o nome original do instrumento é apenas viola, é assim que nos referimos a elas por todo o país. Mesmo diferentes tipos de violas, de regiões diferentes, eram todas chamadas apenas viola. Eventualmente as pessoas começaram a especializá-las, para que soubesses imediatamente qual era o tipo de viola, e de que região, baseada na sua aparência. Portanto esta é chamada viola da terra. “Da Terra” é a terra —Viola da terra. Esse é o nome comum. O outro nome é Viola dos Dois Corações, os dois corações. Isso é porque tem dois corações famosos na parte dianteira. Viola dos Dois Corações—viola de dois corações.
Por tantas pessoas saírem daqui e imigrarem para outros sítios, tens os dois corações—o coração que ficou e o coração que partiu. Hoje em dia, se as pessoas decidem mudar-se ainda as consegues ver online, vês as fotografias delas no Facebook, podes falar com elas pelo Skype ou fazer uma transmissão ao vivo. A maioria das pessoas não percebe que, há cem anos atrás, se alguém fosse num barco para a América ou para o Canadá, quase de certeza, que elas nunca mais viriam as suas famílias novamente. Mesmo que pudessem escrever cartas, que às vezes, demoravam um ano a chegar. Portanto, o coração que ficou e o coração que partiu. Assim, as nossas famílias estão sempre conectadas a algo.
Escreves e executas música original para a viola da terra, mas também tocas e gravas muita música açoriana tradicional. Sentes a responsabilidade de manter esta música viva?
O que eu tento fazer, não estou a dizer que consigo sempre, é fazer uma ponte entre o passado e o presente. Quando gravei o meu primeiro CD em 2012, gravei cinco músicas tradicionais, mas também cinco músicas originais. Temos de mostrar um pouco do que o instrumento era, mas também o que ainda é, o que ainda pode ser. Então sim, é como que uma missão. É importante sentir-me conectado criativamente a onde sou, à nossa história. É um dom partilhar isso com outras pessoas.
Também estás a trabalhar para criar um currículo de ensino para ensinar a viola da terra, que permitirá às pessoas aprendê-la e tocá-la pelo mundo.
Sim, eu ensino aulas particulares e num conservatório de música aqui em São Miguel. Estamos a desenvolver um currículo que possa ser adotado e ensinado noutros lugares. Não acontece todos os dias, mas pelo menos uma vez por mês recebo uma mensagem de alguém no mundo a dizer algo como: “Sou um músico profissional na França, pode enviar-me alguns dos seus livros de música para que eu possa tocar essas músicas.” Queremos ter a certeza de que as pessoas entendem a música, que existem partituras que elas saibam ler. É bom lançar isso no mundo, caso contrário a música poderia facilmente desaparecer. Também tenho os meus alunos, de idades variadas, desde crianças pequenas até ao meu mais velho, que tem 83 anos. É um prazer ensinar e explorar um instrumento que está conectado à minha história de vida e à história das ilhas.
Como te aproximas de escrever música nova para a viola da terra?
O que eu queria primeiro era apenas aprender e tentar ser como os outros. E depois, quando eu comecei a ter maturidade no meu estilo de desempenho as pessoas disseram-me, “Não, nunca vais conseguir tocar como os nossos álbuns antigos.” Pessoas como o Miguel Pimentel, que está agora nos seus 70s. Eu queria tocar como o meu professor, Carlos Quental, e as pessoas diziam, “Nunca vais ser como o Carlos Quental porque ele tem a sua própria identidade, tens de procurar a tua própria coisa, as tuas músicas.” Isso foi como abrir os meus olhos. Portanto, a primeira coisa que fiz foi tocar apenas música tradicional e depois tentar as minhas próprias variações, como adicionar uma melodia diferente. Aos 25 ou 26 anos, comecei a tentar explorar um pouco mais o instrumento. Em São Miguel e na Ilha Santa Maria, normalmente só tocamos com o polegar. As pessoas tentaram sempre dizer-me, “Porque é que não a tocas como a guitarra clássica, porque não tentas explorá-la?” Então é isso que faço. É importante preservar a música antiga, mas, se não criares também música nova, então o instrumento deixa de estar vivo. Queres que ele viva, que continue a viver.
Já tocaste pelo mundo, gostas de tocar em frente às pessoas?
Sim, muito. Sinto sempre alguma tensão, claro, alguma ansiedade. Os primeiros concertos em que toquei foram com o grupo folclórico a que pertencia, quando tinha 13 anos. Na primeira vez estava muito nervoso, quase desmaiei porque tinha de tocar solos e só sabia tocar viola há algumas semanas, mas acostumas-te. Agora toco em frente a audiências sozinho com a minha viola, ou com um ou dois músicos, e nunca sabes, podem ser 30 pessoas, podem ser 500 pessoas. No início, causou-me muito stress, mas hoje em dia, se tiver um mês onde não tenho nenhum tipo de concerto sinto saudades do palco. Quando era mais novo não precisava disso, mas agora preciso. Sinto saudades do palco e da adrenalina.
Eu gosto realmente de estar em frente às pessoas e tocar o instrumento. Falo com a plateia como estamos a falar aqui. Toco duas ou três músicas e explico um pouco sobre o que elas significam, de onde vêm. Acho que tenho a necessidade de fazê-lo—de apresentar estas músicas à plateia—ou de outra forma sinto-me congelado no tempo. E depois, às vezes, as coisas não estão a fluir ou até começas a ficar cansado, deprimido com o stress da vida, e, quando vais para o palco tudo isso desaparece. Posso estar a dar aulas todos os dias—das 13:30h até às 20h—e depois, se tenho um concerto à noite, ainda consigo completar o ensaio todo e ir para casa. Poder estar no palco motiva-me. Gosto do trabalho normal de ensinar, mas também é muito complicado ensinar diariamente, trabalhar com um aluno de seis anos de idade e fazê-lo repetir, repetir, repetir. Começas a ficar um pouco cansado. Preciso dos concertos ao vivo, mantém-me vivo.
Aqui estão cinco vídeos que podem dar às pessoas o conhecimento pessoal da viola da terra:
-
Rafael Carvalho - Origens. (origens). Esta é uma das minhas próprias composições: A técnica é tocar apenas com o polegar, que é uma técnica comum, é comum de São Miguel e Santa Maria.
-
Manuel Canarinho (Violino) e José Canarinho (Viola da Terra): ilha do Pico. Esta é a técnica da Ilha do Pico e do Faial. A Viola faz o ritmo e não a melodia. Isto é espetacular!!!
-
Grupo de músicos da Ilha de São Jorge. Eles estão a recrear a dança tradicional. A viola está no meio da dança. Isto é uma recreação, mas ainda é algo comum nessas ilhas. Também a técnica é uma mistura de melodia tocada com o dedo indicador. Outros músicos estão a fazer os acordes.
-
José João Mendonça. Ilha Graciosa. Esta é uma técnica muito difícil, que combina a melodia com o dedo indicador e fazer o “baixo” com o polegar. Esta técnica é comum na Ilha Terceira, Graciosa, São Jorge.
-
Na minha cidade natal. Ribeira Quente. A tocar a “desgarrada” com a Idalina Leite. Este é um exemplo de uma tradição onde as pessoas só cantam o que se passa nas suas almas. Ela tem-nas memorizadas, mas às vezes muda o assunto e, utiliza algumas frases memorizadas e cria algumas das suas. Esta é uma tradição que ainda existe, muitas pessoas cantam apenas por horas a improvisar cada frase.